domingo, 30 de março de 2014

Nem tudo o que é tradicional é bom


No mundo ocidental onde é cada vez mais difícil legitimar a violência física, a barbárie verbal continua de boa saúde. O insulto não acciona as plaquetas. O resultado do desprezo continuado não aparece depois de umas horas. É coisa para demorar semanas, meses ou anos dependendo do indivíduo. Normalmente os sinais físicos são pouco conclusivos: expressão sisuda, indisposta num rosto de olhos cavernosos o que acaba por dificultar nutrir simpatia pelo ser humano debaixo daquela pele. Será má pessoa?

Gostamos de pensar que somos muito diferentes dos nossos antepassados que aplaudiam o churrasco/enforcamento/separação da cabeça/tortura de dissidentes. Tudo coisas de aspecto muito gráfico, irrevogávelmente repugnantes e imediatamente irreversíveis.

Mas é esta coisa fofa do "amanhã ainda se pode resolver" que faz com que volvidos 38 anos sobre a abolição total da pena de morte ninguém ainda tenha pensado nos malefícios da violência emocional.

Não somos criaturas tão racionais como gostamos de publicitar e sobretudo de dizer a nós próprios.

O que tem isto a ver com tradição? É o lado emocional que nos tolhe a razão. O ser humano é um bicho muito complexo, que nunca se pode considerar sozinho. Têm um "modelo do mundo", uma expectativa do que a sociedade deve ser. Esse modelo é que o que nos permite operar no dia a dia sem queimar os neurónios.  Há tanta coisa que nem pensamos. ex. Como se cumprimenta uma pessoa? porque é que o beijo na bochecha é melhor que o beijo na testa?  Até ideias mais abstractas como "o que significa viver uma vida plena" são fortemente influenciadas pela cultura que nos rodeia.
Quando se abala esse modelo de mundo a resposta não é a mesma que quando alguém nos diz que afinal onde pensávamos que não há nada, no vácuo, há partículas que se formam e destroem num instante ( ideia introduzida pelo livro "a universe from nothing" de Lawrence Krauss ).

É frequente ouvir de altas figuras da vida política portuguesa que o estado deve zelar pela tradição. Deve? Consigo compreender que se preservem os edificios, as obras de arte, as coisas físicas cuja reprodução nunca substituiria o original. Mas a tradição orgânica? As danças? As touradas? Os rituais? A musica? Não é isso dever das populações que as produzem?

Rio-me sempre (de forma estupidamente infantil- confesso) quando vejo este vídeo. Das melhores pérolas que já desenterrei no youtube.



Directamente ao ponto. A tourada precisa do apoio do estado porque cada vez são menos as pessoas que acham que um touro ensanguentado é algo que valha a pena pagar para ver. Faz sentido que todos os anos centenas de milhares de euros do erário publico sejam canalizados para manter os cavalos usados neste espetáculo? Que dever é que um país que já não está minimamente interessado naquele aspecto bárbaro do nosso passado tem de contribuir para ele continuar a existir?


SEPARAÇÃO POR GÉNERO


Durante séculos repetidos sabores do religioso propagaram a ideia de que existem diferenças determinantes entre adultos dos dois géneros e que a sua genitália determina o papel que estes desempenham na sociedade. O seu status e os seus direitos, as suas expectativas e objectivos. 
Conforme estas imagens ilustram, se os caminhos que ambas as sociedades tomaram se transformaram radicalmente, a raiz não difere significativamente. 




MUTILAÇÃO GENITAL 

Masculina- Circuncisão. Para os ortodoxos a pele é tradicionalmente removida pelos lábios da pessoa incumbida o que pode resultar na infecção da criança por herpes ou outras doenças.  
Feminina - Em alguns países africanos é tradição remover o clitoris de forma a que a mulher nunca tenha prazer numa relação sexual. 

cintos de castidade, comuns para mulheres durante a época medieval e posteriormente introduzidos durante a época vitoriana para "ajudar" os homens a não se masturbarem. 



Se é verdade que estes dogmas têm proveniências diferentes. A postura que os perpetua é a postura teísta. A postura de que existe alguma verdade absoluta, imperscrutável, inquestionável, que podemos apenas aceitar, sem exigir compreende-la.

Uma das vozes mais sonantes neste âmbito é a de Sam Harris, autor de "The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason". Harris argumenta que a proteção a dogmas religiosos, sob o véu da "liberdade para praticar uma religião", não faz sentido numa sociedade que sabe o suficiente sobre si mesma para compreender que alguns dos princípios dessas religiões são prejudiciais para quem as pratica.

Há quem tenha argumentado que Harris defende uma moral cientifica tão dogmática como a religião e que a ciência é incapaz de explorar a metafísica. Se é verdade que a ciência não têm todas as respostas, não é verdade que seja dogmática. Não existem dogmas em ciência, qualquer teoria cientifica é falsificável.

Por ultimo, se é verdade que a ciência não têm todas as respostas, isso não é um motivo válido para ignorar as respostas que têm, especialmente se se pretende excluir a ciência do debate moral, com base nessa premissa.


A civilização sempre avançou em meios onde se cultivou a diversidade de ideias e a liberdade para questionar. Qualquer esperança numa sociedade capaz de abraçar a inegável diversidade de interpretação do que significa "ser humano", que queira procurar o bem estar dos seus habitantes, nunca poderá escusar-se de reflectir sobre si mesma e por em causa os seus dogmas.

Está mais que na hora de rever o que significa esse "bem estar" e de rever o que sabemos sobre nós próprios sem a sombra do mito sobre a luz da realidade.











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